A pandemia do Covid-19 impulsionou a economia digital. No Brasil, entre abril e junho, meses de pico do distanciamento social, 5,7 milhões de consumidores fizeram sua primeira compra pela internet (dados divulgados pela Neotrust/Compre&Confie, empresa de inteligência de mercado, dimensionando o movimento do consumidor)[1].
Esse fenômeno coloca em evidência uma pauta que vinha sendo discutida tanto no âmbito nacional quanto internacional: a adequação do sistema de tributação do consumo à economia digital. A taxação desse setor é alvo de discussão na OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) desde 2013. Concomitantemente, países europeus têm instituído impostos sobre serviços digitais, numa tentativa de compensar a dificuldade de arrecadação do IRPJ (Imposto de Renda Pessoa Jurídica) de empresas como Google, Amazon e Facebook.
A proposta de reforma tributária no Brasil
A reforma tributária proposta pelo Governo Federal, em um de seus pontos, segue essa tendência. Em substituição ao PIS e à COFINS, o projeto institui a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), à alíquota de 12%, e atribui às plataformas digitais a responsabilidade pelo recolhimento da CBS incidente sobre a operação realizada por seu intermédio nas hipóteses em que a pessoa jurídica vendedora não registrar a operação mediante a emissão de documento fiscal eletrônico. Na prática, a proposta de reforma tributária do Governo Federal atinge diretamente os operadores de marketplace, que passariam a ser responsáveis pelo recolhimento da CBS devida pelas pessoas jurídicas (sellers) que não emitirem nota fiscal.
A responsabilização dos operadores de marketplace pelo fisco não é uma novidade. Principalmente no âmbito estadual, tem se tornado tendência imputar às plataformas digitais a responsabilidade por fornecer informações sobre as operações ocorridas em seus ambientes virtuais e até mesmo pelo recolhimento do ICMS devido nas operações. O Estado de São Paulo, por exemplo, determina que os operadores de marketplace devem apresentar à Secretaria de Fazenda informações sobre as operações ou prestações promovidas pelos seus clientes por seu intermédio, além de verificar a situação cadastral dos seus clientes. Entretanto, a responsabilização dos operadores de marketplace imposta pelos fiscos estadual e federal pode apresentar vícios jurídicos e tem sido alvo de críticas por empresas do segmento.
A intermediação no marketplace
O conceito de plataforma digital trazido pelo PL 3.887/2020 (“qualquer pessoa jurídica que atue como intermediária entre fornecedores e adquirentes nas operações de vendas de bens e serviços de forma não presencial, inclusive na comercialização realizada por meios eletrônicos”) é muito amplo e abrange todos os tipos de operações desenvolvidas pelos operadores de marketplace, as quais podem tanto ser uma simples intermediação (aproximação do seller ao consumidor) quanto envolver estruturas complexas com agregação de serviços de logística, meios de pagamento, vendas etc.
Nesse sentido, quando o marketplace é mero intermediário, ele não possui ingerência sobre a emissão de notas fiscais pelos sellers, gatilho que, todavia, aciona a responsabilização pelo recolhimento da CBS, o que demonstra a arbitrariedade e o descabimento da responsabilidade que se busca imputar às plataformas digitais. Além do mais, considerando que, a princípio, a CBS seria passível da não cumulatividade plena (permitindo a compensação de toda CBS paga na etapa anterior), soa no mínimo incongruente imputar a responsabilidade pelo recolhimento da contribuição a terceiro (no caso, o marketplace) que não se creditaria da contribuição eventualmente recolhida em operações anteriores.
Legalidade Questionável
O sistema tributário brasileiro baseia-se largamente na Constituição Federal (CF) e no Código Tributário Nacional (CTN). Este trata da responsabilidade solidária (artigo 124) e da responsabilidade de terceiros (artigos 128 a 135) pelo pagamento de tributos. Tais normas determinam expressamente quem pode ser responsabilizado, solidariamente ou como terceiro vinculado ao fato gerador do tributo, pelo recolhimento do tributo. É possível que os operadores de marketplace não se amoldem a nenhuma das categorias previstas em tais artigos.
Impacto nas importações
O projeto de reforma tributária do Governo Federal afeta, ainda, as operações de importação de serviços realizadas por pessoas naturais, ocasião em que as plataformas digitais serão responsáveis pelo recolhimento da CBS e deverão se cadastrar perante a Receita Federal do Brasil para cumprir as respectivas obrigações. Entretanto, nesse ponto o PL do Governo Federal tem sido menos criticado, inclusive pelas próprias empresas do setor, uma vez que esta determinação segue orientação global, capitaneada pela OCDE, de tributar o consumo no destino da operação de venda ou prestação de serviços.
Resumindo
Em síntese, o projeto de lei da reforma tributária promete impactar a economia digital, setor que ganhou protagonismo na atual crise sanitária que assola o Brasil e o mundo. Ao mesmo tempo que está claro que a proposta segue a tendência internacional de adequação do sistema de tributação do consumo à economia digital, ela representa certas complicações para o comércio online, uma vez que transfere a obrigação fiscalizadora para os operadores de marketplace, impactando as importações, os pequenos negócios e, para alguns segmentos, a própria viabilidade do comércio digital.
[1] https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/07/comercio-digital-ganha-57-milhoes-de-consumidores-e-varejo-diz-que-eles-vieram-para-ficar.shtml
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Autora
Andreia Moraes Silva
Sócia
Pós-Graduanda em Administração de Negócios (MBA) pela Fundação Getúlio Vargas.
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